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Escolhi ao acaso na Bíblia de referência Thompson o tópico “Superficialidade”, para comentar rapidamente, um exercício que pretendo me impor outras vezes. Segundo o autor, pode haver superficialidade: na afeição (Ezequiel 33.31); no ouvir (Ezequiel 33.32); nas raízes (Marcos 4.16,17); no fundamento (Lucas 6.49); na recepção da mensagem (João 6.66); nas convicções (Efésios 4.14).
Creio ser um tema pertinente para estes dias de muita informação e pouca absorção. Optei por analisar os seus perigos nesta rápida reflexão (e espero não ter pecado pela superficialidade).
A superficialidade na afeição nos torna indiferentes a Deus. Dizemos que o amamos, mas correspondemos ao seu amor com pura religiosidade. Declaramos amor por sua obra, mas só cuidamos dos nossos interesses. Confessamos amor pela Palavra, mas tendemos a confundir as axilas com o coração. Interessante que Ezequiel contrapõe a falta de afeição a Deus com o amor ao dinheiro. Talvez fazendo eco ao profeta, Jesus deixou claro que a alma não foi feita para a bigamia: não há como acolher Mamom em casa sem se divorciar de Cristo.
Ezequiel compara a superficialidade no ouvir com a sensação agradável e momentânea de ouvir uma bela canção. Passados esses poucos minutos, voltamos à velha realidade. Vezes sem conta ouvi pessoas, ao final do culto, elogiando a mensagem pregada, mas sem permitir que ela mudasse uma vírgula na carta mal escrita que era a vida deles. Tiago diz que devemos ser praticantes da Palavra, não meros ouvintes.
As raízes permanecem na superfície quando deparam com um solo rochoso, impenetrável. A verdade não cria raízes nos corações endurecidos pelo radicalismo, nos crentes fossilizados pelos costumes, na religião inoperante que chegou ao estado de pedra. Essa dureza é a que nos engessa, não a que nos fortalece. Afinal, é a verdade que nos liberta. Assim, se a deixamos morrer na superfície, sem permitir que ela nos penetre e se fortaleça em nós, estamos matando também a nossa liberdade — e permaneceremos fossilizados, engessados.
Sem dúvida, a superficialidade no fundamento é prenúncio de desastre. O povo religioso dos tempos de Cristo dava todas as honras a líderes que não conheciam as Escrituras nem o poder de Deus, sem contar os que não passavam de sepulcros caiados. Muitos crentes hoje constroem a sua morada espiritual sobre as areias dos modismos e das doutrinas triunfalistas. Nada se pode esperar deles senão a queda.
Outro perigo é a superficialidade na recepção da mensagem. Nossa sociedade relativista nos ensina a rejeitar os absolutos divinos, e o resultado dessa tendência é que passamos a desprezar a franqueza purificadora da Palavra e a valorizar apenas os discursos que nos agradam, a despeito de quanto sejam enganosos. Passaremos a vida correndo atrás dos profetas de Acabe, ansiosos por que nos digam apenas o que queremos ouvir.
Por fim, temos a superficialidade nas convicções. É uma forma errada de ser receptivo. Em vez de receber conscientemente a verdade, acolhemos qualquer coisa que se pareça ou se apresente como verdade. Crentes assim evocam a imagem daqueles arbustos secos e sem raiz rolando ao sabor do vento, que vemos nos filmes de faroeste.
A superficialidade, portanto, apesar do nome, pode abalar as estruturas da nossa fé. Longe de ser uma ameaça sem maiores consequências, é um perigo real e imediato. É uma blindagem com aparência de renda que pode nos impedir o acesso a Deus e à sua verdade, um rio coberto com gelo fino que pode nos engolir e arrastar para a morte espiritual.